A história de Atxu

A chegada de Atxu Marimã estava prevista para as dez da manhã, no Voyager, um dos cinco portos da cidade amazonense de Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Era 28 de fevereiro de 2023, um típico dia chuvoso do inverno amazônico. Apesar disso, o movimento de barcos continuava intenso no Rio Solimões.

Uma lancha branca, toda fechada com vidros fumês pretos, finalmente se aproximou. Era a embarcação do comandante Garotão, na qual Atxu dissera que viria ao nosso encontro. As pessoas começaram a descer pouco a pouco, mas nenhuma delas usava uma camisa amarela de mangas laranja, como Atxu descrevera a roupa com a qual nos encontraria.

Um pouco antes de a lancha iniciar os procedimentos para voltar à cidade de Benjamin Constant, desembarcou, por último, um homem com a camisa amarela – a bem dizer, ocre – de mangas laranja. Ele se aproximou e nos cumprimentou de um jeito efusivo. A sua fisionomia não nos era estranha: lembrava a de alguns amigos nossos do povo Jamamadi. Como eles, Atxu é também baixinho.  

Chegava ao fim a nossa busca por um dos raros membros do povo Hi-Merimã que deixaram o isolamento (os indígenas Hi-Merimã vivem isolados no Sul do Amazonas). Aos 41 anos, Atxu era a fonte que nos permitiria conhecer um pouco mais desse povo, de seu modo de vida, sua organização social e sua cosmologia.

O indígena deixou o isolamento quando ainda era criança, depois de uma tragédia ocorrida com sua família no fim dos anos 1980, época em que as invasões do território Hi-Merimã por extrativistas e madeireiros estava em seu auge. As poucas informações sobre esse caso provinham até então de relatórios feitos pela Funai na época. Indicavam que, de um grupo de dez hi-merimãs que haviam feito contato com não indígenas, seis haviam morrido (quatro adultos e duas crianças) e apenas quatro crianças tinham sobrevivido. Depois de entrarem em contato com os brancos, elas foram separadas e adotadas por diferentes famílias ribeirinhas, das quais receberam novos nomes: Romerito Marimã (Atxu), então com cerca de 12 anos, Isabel, de 8 anos, Moisés, de 5 anos, e Ari, de 2 anos.

Com essas poucas informações, começamos em 2010 a nossa busca por Atxu no mundo dos brancos. O primeiro passo foi procurar o indigenista Rieli Franciscato. Franciscato havia atuado na proteção dos isolados da região do Vale do Javari. Foi ele quem nos contou que a última notícia sobre o paradeiro do indígena era que ele estaria vivendo justamente no Javari, um dos extremos da Amazônia brasileira. Entramos em contato, então, com outro indigenista, Bruno Pereira, que atuava no Javari havia anos. Pereira identificou Atxu como uma das pessoas com as quais havia trabalhado na Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus, órgão vinculado à Funai responsável pela proteção aos isolados.

Com a pandemia, interrompemos nossa procura. O contexto político do governo Bolsonaro também tornava impensável qualquer avanço na investigação. Em 2020, Rieli foi morto tragicamente, flechado por um indígena isolado da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, um dos povos aos quais havia dedicado a vida. Em 2022, outra tragédia: Bruno Pereira foi assassinado, junto do jornalista Dom Phillips, por traficantes que atuavam na Amazônia. Eram nossas duas referências para tentar desvendar essa história. Voltamos à estaca zero.

No início de 2023, com a mudança de governo, resolvemos retomar a procura. Uma colega que havia trabalhado na Coordenação Regional do Vale do Javari nos sugeriu falar com uma servidora da Funai de Tabatinga. Ligamos para ela. Por coincidência, Atxu havia passado pelo escritório dessa unidade da Funai havia poucos dias. Ela não só conhecia o indígena como tinha também seu número de telefone. Ligamos. Uma mulher atendeu e, um tanto assustada, respondeu que Artur – como ela chamava Atxu – estava trabalhando e só voltaria de noite. No dia seguinte, o nosso telefone tocou: era ele.

– Olha, não sei se vocês sabem, mas eu sou índio. Sou um índio marimã – disse Atxu, logo no início da conversa.

Perguntamos por qual nome ele preferia ser chamado.

– Podem me chamar de Atxu, Romerito ou Artur.

– Ok, vamos te chamar de Atxu.

Ele disse que tinha muito a falar sobre o seu povo.

– Os meus parentes ainda existem. Tem bastante gente na mata, mas sem contato com brancos. Mas disso não quero falar pelo telefone.

Atxu veio então ao nosso encontro em Tabatinga.

Apenas em 1988 a Funai instituiu a política de não contato com os indígenas isolados. Antes disso, a estratégia do órgão indigenista era atrair indígenas em isolamento, promover o contato com agentes do governo e, posteriormente, com outros grupos sociais. A maior parte das experiências de contato resultou em tragédia, com a morte de dezenas de indígenas, sobretudo por doenças para as quais não tinham imunidade. Em seu relatório sobre a tragédia da família de Atxu, inclusive, a Funai recomendava a aproximação com os hi-merimã. Por sorte, o contato nunca foi feito. Depois da instituição da política de não contato, passou a vigorar a estratégia de que o contato apenas se daria caso houvesse uma aproximação voluntária dos indígenas.

No Brasil existem registros de 115 povos indígenas vivendo em isolamento. Destes, 29 já estão confirmados e 86 permanecem sendo investigados. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), 54 desses povos estão em terras indígenas e 24 em unidades de conservação. Há ainda registros deles em oito áreas sem nenhuma proteção. O isolamento dos indígenas não significa que desconheçam a existência de não indígenas. Eles sabem que os brancos estão por perto, e os monitoram – como também são monitorados pelos indigenistas. É por saberem como agem os brancos que esses povos recusam quaisquer contatos, pois, quando ocorreram, estes resultaram em situações traumáticas, marcadas pela violência. Sem falar que, mesmo com proteção legal, os territórios de povos isolados seguem ameaçados por invasores e pelo desmatamento.

O território hi-merimã só foi demarcado em 2005. Hoje, conta com a proteção da Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus, da Funai, que monitora a região para impedir ameaças e invasões. A ideia é deixar os indígenas em paz em seus territórios, vivendo da forma como querem, a partir dos recursos que dispõem na floresta. Segundo a Frente de Proteção Etnoambiental da Funai, estima-se que a população seja de duzentas pessoas, vivendo num território de cerca de 678 mil hectares, na Terra Indígena Hi-Merimã, no Sul do Amazonas. Na época em que Atxu e seus irmãos fizeram contato com os brancos, os hi-merimãs eram menos numerosos que hoje, segundo estimativas. Hoje calcula-se que sejam mais numerosos, graças ao trabalho de proteção, que voltou a garantir condições seguras de vida.

Em Tabatinga, depois da chegada de Atxu, deixamos o porto Voyager e fomos para o hotel. Desde que se mudou para Benjamin Constant, a cerca de 21 km de barco de Tabatinga, ele estava vivendo outra forma de isolamento: ninguém sabia de seu passado, nem mesmo sua mulher. Nosso objetivo era conhecer sua história pessoal, mas também algo sobre as condições de vida de seu povo, do qual sabemos tão pouco.

Para nossa sorte, Atxu, apesar de ter sido afastado dos hi-merimã ainda muito novo, guardava memórias vívidas sobre a rotina de sua família, bem como sobre o modo de vida e os costumes de seu povo.

Uma curiosidade que tínhamos era sobre as roças dos hi-merimãs, que são nômades. Sabe-se que esse povo, ao contrário de outros grupos indígenas brasileiros, não cultiva a mandioca, seja da espécie brava ou da mansa (também conhecida como macaxeira no Norte do país). Os hi-merimãs alimentam-se sobretudo de batatas selvagens, das quais são exímios coletores. Foi a partir desse vegetal que criaram uma cultura material e alimentar sofisticada, situação que refuta as narrativas que relacionam o grau de complexidade da vida social de determinado povo com a sua agricultura e a sedentarização – residência ou padrão residencial fixos. Mesmo com sua grande mobilidade territorial, os hi-merimãs carregam consigo uma agricultura de grande elaboração.

A partir da análise dos vestígios deixados por esse povo na floresta, havíamos descoberto toda uma cadeia de processamento da batata Casimirella ampla, da coleta à extração da goma desse vegetal. Mas não conseguimos decifrar de que modo a goma era consumida pelos indígenas. Atxu explicou: “É simples. É como se prepara um beiju [tapioca] mesmo.” E acrescentou, de modo saudoso: “Comíamos com caldo de peixe ou carne moqueada.” Ele contou ainda como é produzido o suco do patauá, uma palmeira muito comum e importante para a alimentação dos hi-merimãs. Falou também do conhecimento que seu povo tem de vários venenos vegetais, o modo como pratica o xamanismo e como se davam as relações com os vizinhos jamamadis quando ele era criança.

Atxu contou das grandes refeições que a família realizava durante dias, depois de pescarias e caçadas, e também das muitas frutas que seus pais coletavam para presentear os filhos como um gesto de carinho. A floresta era morada, fonte de alimentação farta, lugar das brincadeiras com os irmãos. É por estar carregado de suas lembranças e marcas da vida em família que Atxu luta para proteger seu território. Proteger a terra é uma forma de resistência da memória.

Além das informações gerais sobre os hi-merimãs, havia algo bem doloroso que queríamos perguntar a Atxu: a verdade sobre o que aconteceu com a sua família há quase quarenta anos.

Ele só falou disso no dia seguinte ao nosso encontro, em 29 de fevereiro de 2023, quando seguimos todos até Benjamin Constant para conhecer a sua casa. Ancorada em palafitas à beira do Rio Javari, a casa de madeira com dois quartos, emprestada temporariamente de uma vizinha, abriga Jussara, sua mulher, e seus filhos Saulo e Felipe, de 5 e 3 anos.

Atxu nos contou sua história pessoal no fim de tarde daquele mesmo dia. As gotas fortes da chuva do inverno amazônico se chocavam nas telhas de zinco quando ele iniciou seu relato. “Agora eu sou um homem adulto e perdi o medo. Agora chegou o momento”, disse. “Eu tinha medo dos pais que me criaram. Eles falaram que iam me espancar se eu contasse a verdade. Eu tinha medo de contar essa verdade para a Funai.”

Ele se referia especificamente às expedições da Funai para investigar a tragédia com sua família. A primeira expedição foi feita em 1988 pelas antropólogas Olga Maria Navarro Pinto e Luciene Moraes de Oliveira, que produziram o relatório oficial da Funai, sugerindo a necessidade do contato, “o mais rápido possível”, como escreveram. Nesse documento estão as últimas fotos de Atxu e seus irmãos quando ainda viviam próximos. São imagens fotocopiadas de baixa qualidade, em preto e branco, de modo que não é possível identificar todos os presentes, tampouco os detalhes da fisionomia das crianças.

Em uma das fotos, Atxu aparece sozinho, contraído, mão na boca, com olhar entre desconfiado e curioso. Em outra imagem, seu irmão Moisés, de quem ele nunca mais teve notícias, está com o cabelo aparado. Ao seu lado está uma senhora idosa e a filha dela, um pouco mais velha que Moisés. Ari, o irmão mais novo, aparece em outra imagem no colo de sua mãe adotiva, ao lado do marido. Ari é a única criança que sorri nas fotografias. Devido à péssima qualidade, as imagens de Isabel, irmã de Atxu, só são reconhecíveis graças às legendas.

Durante algumas horas, Atxu descreveu os acontecimentos vividos por sua família em 1988 e os motivos que a levaram a sair do isolamento e fazer contato com os brancos. “Minha memória é boa. Acho que eu saí assim para contar a minha história, dos meus pais, da minha mãe”, disse.

A maloca principal da sua família ficava na cabeceira do igarapé Tracoá. Ali viviam onze pessoas: o pai, as duas mulheres dele (que eram irmãs) e os oito filhos, entre eles dois bebês. Quando a caça ficava mais escassa, eles se mudavam para a cabeceira de outro igarapé, o Piranha ou o Riozinho. Alimentavam-se do que a floresta oferecia, dos frutos das árvores, de caça e das batatas, que cultivavam em diferentes trechos do território, mesmo em constante perambulação. Atxu contou que, nessa época, seu pai havia entrado em conflito com outros familiares hi-merimã e com a família de sua mãe, que era do povo jamamadi. Com isso, deixaram de estar em contato com os parentes que também viviam na floresta.

No dia da tragédia, a família havia feito um acampamento na cabeceira de um igarapé. “Papai chegou com as caças, foi limpá-las e jantamos.” Escureceu e, do fundo das sombras, veio o início da desgraça. “Uma onça atacou papai. Estava escuro. Foi um alvoroço. Eu subi numa árvore. Mamãe gritava por mim, e eu gritava que estava lá em cima”, ele recordou. “A onça é um animal muito feroz, pode atacar a qualquer momento, e a gente não pode se defender, mesmo sendo do mato também. A gente não tem como combater uma onça, não.”

Atxu disse se lembrar até hoje da marca das quatro presas do bicho na cabeça do pai, que pareceu se recuperar do ataque. Porém, depois de comer carne de anta, segundo Atxu, o ferimento na cabeça piorou e o pai começou a delirar. “Ele via anta e queria flechar. Via na visão dele que era anta. Não falava coisa com coisa. Via um veado, uma anta, um porco”, descreveu. O que na visão delirante de seu pai eram animais, na realidade eram as mulheres e os filhos. O pai já não era capaz de reconhecer os seus parentes e se tornara uma ameaça para todos, porque queria atacá-los, julgando serem animais.

Para proteger os filhos e se proteger também, a mãe de Atxu decidiu que todos iriam embora, se afastando do pai. A qualquer momento, ele, em sua alucinação, poderia flechar alguém. Ao mesmo tempo, a mãe cavou um buraco fundo, ao lado da rede onde o pai de Atxu agonizava, para que o homem encontrasse facilmente seu túmulo quando o momento se aproximasse. E todos partiram, deixando sozinho o homem agonizante. “Mamãe arrumou as nossas coisas e fomos para outro canto. Eu comecei a chorar para não deixar o pai. Nunca mais vi ele.”

O irmão mais velho passou à liderança do grupo. “Foi ele que decidiu que a gente iria entrar em contato com o pessoal do Raimundo Auzier”, contou Atxu. Embora vivessem distantes dos não indígenas, o grupo sabia da existência de famílias de ribeirinhos que haviam se estabelecido em seu território. Acompanhavam a movimentação dos brancos à distância, evitando encontrá-los. Auzier era o chefe de uma dessas famílias.

Atxu, sua mãe, sua tia e seus irmãos andaram durante dois dias na mata, até chegar ao lugar onde viviam os ribeirinhos, no igarapé Caputian. “Não entramos em contato logo, não. Meu irmão fez uma estratégia de como a gente ia fazer isso.” Primeiro, os hi-merimãs bateram timbó – técnica de pescaria que consiste em bater na água um cipó com veneno, que asfixia os peixes. “A gente pescou um monte de peixe. Botou num paneiro [um cesto de palha utilizado para armazenar peixes e outros produtos]. Se a gente apresentasse esses peixes na hora do contato, eles não iriam matar a gente. Essa foi a ideia do meu irmão.”

No primeiro contato, os ribeirinhos correram com medo. Mas o irmão mais velho de Atxu tomou a frente para tentar comunicar que tinham trazido peixe para eles. “Aí o Raimundo Auzier compreendeu. Meu irmão falou que tinha gente no mato logo ali, perguntou se podia trazer; esse foi o dia que nós saímos do mato. Todo mundo saiu, todo mundo estava vivo ainda. Todo mundo com saúde. Todo mundo bom.”

À noite, depois de confiscar os arcos e flechas do grupo, os ribeirinhos perderam o medo. “Eles começaram a se achegar, mas falaram que estavam armados com espingarda. Meu irmão explicou que não queria matar ninguém, que a onça tinha pegado meu pai e que a gente queria morar junto com eles.” Os ânimos se acalmaram, e foi uma noite de festa. Os ribeirinhos colocaram forró no rádio, começaram a dançar e ofereceram cachaça para todos. “A gente nunca tinha visto dançar daquele jeito, a nossa dança é diferente. A gente mangava deles, porque dançavam agarrado.”

Os ribeirinhos ofereceram cachaça a Atxu. “Mas eu não gostei do cheiro. Eu era pequeno.” Todos foram dormir, embaixo das matas. “Dormi até amanhecer o dia. Para mim era uma alegria imensa estar no meio dos civilizados. No começo, no igarapé Caputian, onde eles viviam, não era ruim, não. O pessoal era legal, dava comida, pegava peixe para a gente.” Cerca de três meses depois, as coisas mudaram.

O relatório da Funai diz que, depois desses meses de convivência relativamente pacífica, os ribeirinhos e os indígenas passaram a viver uma relação tensa. As causas e os responsáveis dos acontecimentos que se seguiram nunca foram devidamente esclarecidos. Segundo se contava, a mãe de Atxu, com seu bebê de colo, e o irmão primogênito um dia desapareceram do povoado ribeirinho. Os sete indígenas restantes – Atxu, Moisés, Isabel, Ari, um irmão deles de 14 anos e outro ainda bebê (provavelmente com menos de um ano, chamado Joia) e a tia (como ele chama a irmã de sua mãe e também mulher de seu pai) – teriam se deslocado para outra região. Segundo Atxu, a tia foi encontrada morta por ribeirinhos, com o corpo já em decomposição, o irmão de 14 anos morreu por causa de um ataque de onça, e o bebê, por falta de alimentação adequada.

Atxu tem uma versão um pouco diferente. Depois de três meses, toda sua família foi expulsa do lugar onde vivia com os parentes de Auzier, que deu uma canoa para que os indígenas se mudassem. O grupo seguiu pelo rio com o intuito de alcançar uma aldeia jamamadi, povo de sua mãe e de sua tia, ou mesmo Hi-Merimã, da família paterna. Depois de três dias, uma gripe se espalhou pelo grupo, que teve que encostar a canoa em um local onde vivia um homem conhecido como Zé Luiz. “A gente não conhecia a gripe. Para os índios, é uma doença grave. A gente encostou no Zé Luiz para procurar abrigo.” Segundo Atxu, apenas ele e Isabel, sua irmã, não adoeceram.

A mãe de Atxu e o primogênito, muito adoentados, ficaram na casa de Zé Luiz. O resto do grupo ficou na beira do rio. Um dia, Atxu foi pedir farinha ao homem e levou um dos bebês para ver a mãe doente. Ela pediu para ficar com a criança. “A última vez que eu vi minha mãe foi quando deixei meu irmãozinho lá com ela. Eu fui embora alegre.” No dia seguinte, o irmão de 14 anos foi buscar a mãe, o bebê e o primogênito para irem embora. Mas eles já não estavam lá. “Eu fiquei preocupado, queria ir lá de novo. Mas meu irmão disse para eu não ir. Não sei o que ele viu, se ameaçaram ele, ele não quis me falar. Apenas disse: ‘A gente vai encontrar mamãe de novo.’”

A tia e os seis irmãos restantes seguiram viagem no barco, deixando para trás a mãe de Atxu, seu irmão primogênito e um dos bebês. Durante o percurso, a gripe da tia piorou. Ela acabou morrendo. Atxu conta que, como os irmãos não sabiam bem como enterrá-la, apenas cobriram o corpo dela com palha.

Depois da morte da tia, sem saber o que fazer, as seis crianças, que levavam consigo um bebê, decidiram voltar para a casa de Raimundo Auzier. “Ficamos eu e mais quatro irmãos na casa dele. Depois, foram repartindo as crianças.” Atxu ficou com Heleno, parente de Auzier, e sua mulher, Teresa, que só tinham um filho. No início, ele ganhou roupas e foi bem cuidado. Depois, começaram as suas jornadas exaustivas de trabalho nos campos madeireiros e os maus-tratos do casal. Os outros irmãos – Isabel, Moisés e Ari – foram adotados por outras famílias da região. Não se sabe o que aconteceu com o bebê, mas provavelmente morreu por falta de cuidados adequados.

Em seu documento de identidade, Atxu foi registrado como Romerito Marimã, filho de Abi Marimã (pai) e Ami Marimã (mãe). Como, porém, as palavras abi e ami são vocativos para pai e mãe em muitas línguas da família linguística arawá (da qual a língua hi-merimã faz parte), é mais provável que tenham sido usados pelo menino Atxu para identificar seus pais ao ser perguntado sobre o nome deles. Entretanto, ao subir o Rio Cuniuá, Atxu se lembrou: seu pai se chamava Ywu e sua mãe, Nái.

O pai adotivo de Atxu trabalhava para um patrão de madeira. Seu pai o submeteu a um trabalho análogo à escravidão, em troca de casa, comida e roupas usadas. Em vários dias, Atxu se lembra que chegava cedo para trabalhar, e que não comia nada até o início da tarde.

Ele nos contou que, quando ganhou um perfume de um viajante regatão (vendedor ambulante dos rios no Amazonas), seu pai adotivo tomou de sua mão o pequeno frasco, falando que aquilo “não era coisa para índio”. O pai sempre dizia que Atxu tinha uma dívida com ele, por estar sob sua proteção.

Atxu chegou a ser resgatado pela equipe da Funai e passou seis meses cuidando da saúde em Lábrea, cidade no Sul do Amazonas, próxima do território dos Hi-Merimã. Na ocasião, ele tinha tantos espinhos no pé que não conseguia pisar no chão do barco. A criança só não sentia dor antes porque estava o tempo todo pisando na lama dos caminhos dos madeireiros. Depois dos cuidados médicos em Lábrea, ele foi levado de volta à casa de sua família adotiva.

Aos 15 anos, Atxu conseguiu escapar. “Esse pessoal nunca mais vai me ver de novo”, prometeu a si mesmo. Ele pôde escapar porque, durante um tempo, às escondidas, coletava açaí e vendia, juntando assim dinheiro para a passagem rumo a Manaus.

Cinco anos depois, por volta de 2003, Atxu foi encontrado novamente por Adolpho Kilian quando trabalhava como carregador de gelo no porto de Manaus. O documentarista e indigenista já havia participado de uma das expedições da Funai na região do Purus. Após o reencontro, ele levou Atxu para Tabatinga, onde ele passou a trabalhar na Frente de Proteção do Vale do Javari, no território de indígenas isolados de etnias como Korubo, Matis, Kanamari, entre outras.

Atxu ficou três anos trabalhando na Funai. Depois, foi demitido. Chegou a ter um emprego temporário na Prefeitura de Tabatinga. Algum tempo depois, conheceu sua mulher, Jussara, e se mudou para a cidade vizinha de Benjamin Constant. Dos seus irmãos sobreviventes, Moisés tem paradeiro desconhecido. Depois de ter sido adotado, Atxu ainda manteve contato com Isabel por alguns anos, mas quando deixou a região só teve notícias esparsas dela. Há alguns anos, recebeu a notícia de sua morte (ele não sabe precisar quando).

No fim de 2023, Atxu teve um rápido reencontro em Manaus com seu irmão mais novo, Ari, que cresceu em uma família ribeirinha e, por ser muito novo na época do contato, não recorda da sua infância na mata. Ele estava em Manaus, tratando de uma grave doença renal. Atxu passou duas tardes na pequena casa na periferia de Manaus onde ele estava hospedado durante o tratamento. Prometeram se reencontrar quando Ari se recuperasse, o que nunca ocorreu: o irmão morreu no início de 2024, em decorrência de sua doença no rim.

Em julho de 2023, alguns meses depois do primeiro encontro em Tabatinga, voltamos a nos reunir com Atxu em Lábrea. Dali, junto de alguns funcionários da Funai, fomos em viagem de três dias para o território natal do indígena, para que Atxu pudesse reconhecer os locais onde nasceu e cresceu, e onde depois vivenciou o trágico contato com os não indígenas.

Conforme o barco subia o Rio Cuniuá, Atxu atravessou um processo doloroso de rememoração. Às vezes, acordava os colegas de madrugada para conversar. Ele se lembrava com precisão dos locais, quem havia morado em cada capoeira [trecho de mata em recuperação, que dá pistas de locais de ocupação ou roça onde a floresta foi derrubada no passado] por que passávamos. Recordava também de fisionomias da própria mata – “aquele lugar tem um patauazal [onde há grande quantidade de palmeiras de patauá]”, “ali tem um igarapezinho”…

Chegando à foz do igarapé Caputian, onde Atxu e seus irmãos fizeram contato com os brancos, havia lá a capoeira e os esteios de uma velha casa de madeira. Ele reconheceu um antigo toco de madeira que resistiu ao tempo. Era nele que as crianças hi-merimãs se sentavam para assistir aos brancos jogarem futebol. Foi nesse exato lugar que sua mãe lhe disse para nunca confiar em não indígenas. “E agora estou aqui com vocês”, disse, pensativo.

Ele via as quebradas – marcas nos troncos das árvores que identificavam as trilhas de pessoas e animais na mata – e reconhecia cada uma: “Aqui é a quebrada de alguém que está seguindo uma anta.” Mais para frente: “Aqui é a quebrada de alguém que já matou uma anta e está sinalizando para os parentes.” Foi também um momento de acolhimento, em que Atxu pôde retornar ao seu território natal, sua mata nativa. “Essa mata aqui é muito mais bonita do que aquela onde eu vivi no Javari”, disse. Para um leigo, as duas eram pedaços igualmente preservados da Amazônia. Mas, para Atxu, aquela floresta continha lembranças preciosas de sua infância.

Na época em que ele foi levado dali, as margens do Rio Purus estavam apinhadas de madeireiros, caçadores e pescadores. Eram tantos os invasores e tão intensa a destruição que parecia improvável que a floresta resistisse e que seu povo sobrevivesse. Para surpresa de Atxu, a floresta está protegida e livre de invasores. Os hi-merimãs voltaram a viver em matas prósperas.

No fim de 2023, a produtora audiovisual VU iniciou as filmagens de um documentário sobre a história de Atxu. Nesse mesmo período, ele e sua mulher, Jussara, que é indígena da etnia Cocama, decidiram se mudar para Lábrea. Foi ali que nasceu, em 15 de janeiro do ano passado, sua filha mais nova, Aimê. Desde então, Atxu tem participado das ações feitas pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus de monitoramento e proteção da Terra Indígena Hi-Merimã e dos indígenas isolados da região do Mamoriá Grande, no sudoeste do Amazonas.

Ele se tornou quase uma celebridade entre seus novos colegas, com sua boa disposição para as longas caminhadas e suas histórias do passado, tristes ou engraçadas. As expedições com a presença dele, feitas com o cuidado que se dedica aos bens mais íntimos e preciosos, alcançaram outra dimensão para os indigenistas.

Em uma dessas caminhadas, Atxu fez questão de homenagear os mateiros e indigenistas que têm protegido a floresta onde vive seu povo. A homenagem foi na forma de um longo abraço em Izac Albuquerque, um dos mais antigos indigenistas da Funai na região, que presenciou todas as mudanças nas últimas décadas no território dos povos do Rio Purus. 

Numa dessas ocasiões, o indígena resolveu contar uma piada hi-merimã que havia aprendido com seu pai. Era sobre uma anta que corria atrás de uma pessoa em torno de uma árvore. Ele começou a narrar a história, mas não conseguiu terminar, porque disparou a rir e não parou mais. Ninguém entendeu bem o desfecho da piada, mas todos riram mesmo assim, contagiados pela alegria de Atxu*

noticia por : UOL