Em maio de 2024, Octávio Aguiar passou a maior parte dos dias em cima de um barco. O hábito de cumprimentar conhecidos nas ruas de Eldorado do Sul (RS) deu lugar à audição atenta: se ouvisse uma voz, era hora de parar de remar.
“O que eu vi e o que eu fiz, não sei se tenho coragem para fazer de novo”, diz Octávio, 59, trabalhador de serviços gerais e um dos milhares de voluntários que atuaram na maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. Por três semanas seguidas, ele saía cedinho para patrulhar sua vizinhança, vigiando casas alagadas.
Um ano depois, ainda não esquece dos pedidos de ajuda ou dos três corpos sem vida que encontrou na água. A enchente baixou no fim de maio, mas parece que nada voltou ao normal. “As coisas estão devagar. O pessoal da cidade sumiu. Parece uma cidade fantasma”, disse.
Situada na região metropolitana de Porto Alegre, Eldorado do Sul foi a cidade mais atingida pelas enchentes: dos quase 40 mil moradores, 32 mil precisaram sair de casa devido à enchente do rio Jacuí.
Um ano após a tragédia, é visível nas ruas o contraste entre paredes recém-pintadas e casas sujas de lama endurecida até o telhado. Alguns imóveis exibem placas de “vende-se”, outros estão trancados por correntes ou abandonados. “Muita gente ganhou o aluguel social e sumiu. Nem vieram limpar as casas”, diz Octávio.
A conselheira tutelar Clarice Cavalheiro, 59 anos, esposa de Octávio, relata que casos de ansiedade e depressão dispararam no município.
“A gente atendeu criança que a mãe queria entregar os filhos porque queria se matar. Não tem o que fazer, às vezes não tem marido, só com os filhos, sem nada. Hoje, eu considero Eldorado uma cidade doente”, diz Clarice.
Em maio de 2024, o casal quase não conviveu, algo raro após 37 anos de casamento. Enquanto Octávio percorria a cidade de barco, Clarice acompanhava o acolhimento de crianças e adolescentes nos abrigos.
“As pessoas não sabiam que aqui em casa não tinha mais nada. A gente estava ajudando, mas também tinha perdido tudo”, conta Clarice.
À medida que as pessoas retornavam para lavar as casas e tentar reocupar seus lares, veio a desmobilização de voluntários. “Foram embora. E a gente ficou”, diz Clarice.
Nas semanas seguintes, ela tentou reunir esforços para restaurar obras da biblioteca da cidade, sem sucesso.
O casal morou de aluguel por quase quatro meses. Só conseguiram retornar para casa quando as paredes, ainda úmidas, pararam de dar choque.
No dia a dia, evitam conversar sobre as experiências que tiveram como voluntários na tragédia para não comprometer a saúde mental nem a rotina de sono, que demorou a normalizar.
Apesar disso, as encilhas e selas guardadas na garagem de casa revelam a maior sensação de impotência que guarda daquele período. “Eu tinha cinco cavalos, fiquei sem nenhum”, diz Octávio. Todos foram levados pela água.
Neste domingo (27), ele participou da primeira cavalgada desde as enchentes, montado em um animal emprestado por um amigo. “Hoje eu tenho gratidão por estar bem, por estar vivo, e peleando pela sobrevivência”, diz Octávio.
Morador de Porto Alegre, o artista e produtor cultural Thainan Rocha, 29, passou dias atravessando o lago Guaíba em um barco para ajudar nos resgates em Eldorado do Sul, sua cidade natal.
Depois da enchente, se sente cada vez menos à vontade quando retorna ao município. “Acho que quem permanece em Eldorado perdeu talvez uma inocência, uma luz de trás dos olhos, não sei. Está ficando sombrio aqui”, diz.
Ainda assim, ele diz acreditar que a união dos conterrâneos na reconstrução da cidade pode gerar bons frutos. “Ficou muito um clima de terra arrasada por algum tempo. Em cima disso, a gente constrói o que dá ou o que a gente quer.”
Os pesadelos de estar em um barco virando ficaram para trás, mas Thainan ainda se emociona ao explicar a tragédia para quem não é gaúcho. “Tem vários gatilhos que me levam diretamente para emoções que, naquele momento, não me permiti sentir, e que vem muito mais fortes agora.”
A estudante Mariana Dawas, 22, que foi voluntária em abrigos e centros de donativos em Porto Alegre, diz que as lembranças surgem sempre que passa por locais onde passou as madrugadas ajudando como voluntária. “Pego pensando em como mudou rápido, e como as pessoas tentaram esquecer rápido para se manterem sãs.”
Um ano depois, ela diz sentir um misto de alívio em ver vida onde antes estava alagado e frustração com a possibilidade de novos eventos semelhantes. “Chuvas fortes já me deixam, e deixam as pessoas ao meu redor, ansiosas.”
Apesar do convívio prolongado com um cenário de guerra, Mariana conta que o apoio mútuo entre voluntários foi importante para proteger a saúde mental. “Tentávamos nos distrair e acabávamos nos aproximando. Hoje, ainda mantenho contato com pessoas que conheci.”
noticia por : UOL