sábado, 10, maio , 2025 10:16

O fundo do oceano, um lugar 99,999% desconhecido

Confesso que sou um daqueles sujeitos que torcia o nariz toda vez que alguém mencionava o célebre factoide: “A gente conhece muito melhor a superfície da Lua/de Marte/de Encélado do que o fundo do mar do nosso próprio planeta! É um absurdo, onde já se viu?”. Quando alguém dizia isso, eu só conseguia pensar “Tá, e daí?”.

Meu desdém vinha do fato de que a pessoa que batia nessa tecla, lá no fundo de seu coração peludo, só queria dizer que gastar tempo e dinheiro com pesquisa espacial é inútil. Não é que ela fosse favorável a investir o orçamento inteiro da Nasa e de outras agências espaciais descobrindo tudo o que se há para descobrir sobre as profundezas dos oceanos, veja bem. Esse tipo de crítica costuma vir de gente que, se lhe coubesse dar a canetada decisória, gastaria os referidos recursos com uma nova Marginal em São Paulo, ou algo que o valha.

Continuo achando que se trata de um falso dilema, e que tanto os céus quanto as profundezas são igualmente dignos da curiosidade e da engenhosidade humanas. Mas, nesta semana, queimei a língua feio ao descobrir o verdadeiro tamanho do nosso oceano de ignorância (sem trocadilho).

E o número é o que você vê no título desta coluna. Segundo um estudo recém-publicado, conhecemos menos de 0,001% do leito marinho profundo (200 metros ou mais abaixo do nível do mar). É uma área tão pequena que equivale a um décimo do território da Bélgica, país que, como se sabe, já não prima pela vastidão (que me perdoem os eventuais leitores belgas).

A conta, feita por uma equipe liderada por Katherine Bell, da ONG americana Ocean Discovery League, refere-se à cobertura visual do leito marinho, ou seja, aquelas regiões já observadas e mapeadas diretamente por olhos humanos ou câmeras operadas por eles.

Em artigo que acaba de sair na revista especializada Science Advances, Bell e seus colegas calculam que, mesmo se 1.000 plataformas de estudo espalhadas pelo globo começassem a analisar o leito marinho profundo neste exato momento, num ritmo anual de 3 km² cobertos por ano, o mapeamento completo levaria 100 mil anos. É o mesmo intervalo de tempo que separa o presente do início da expansão da nossa espécie pelo globo.

Parte da razão por trás dessa lerdeza quase impensável é a concentração de recursos e interesse para esse tipo de exploração. Dos 44 mil mergulhos profundos (tripulados ou não) analisados pela equipe, 65% aconteceram perto do litoral de apenas três países: EUA. Japão e Nova Zelândia. E 97% dos mergulhos foram feitos por equipes de cinco nações —além das já citadas, a lista inclui ainda a França e a Alemanha.

Apontar isso não é mero decolonialismo oceanográfico. A falta de abrangência dos dados atrapalha um bocado na hora de ter uma noção clara da diversidade de ecossistemas, bioquímica e geologia do oceano profundo.

A vida nesses lugares, embora, é claro, tenha parentesco com as demais espécies da Terra, é quase um universo biológico paralelo que estamos só começando a entender. Um mundo que, aliás, pode trazer pistas-chave para entender como a vida começou neste planeta, afinal. E com a cobiça da mineração submarina doida para devastá-lo e soterrar tal tesouro para sempre. É hora de mergulhar mais fundo.


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noticia por : UOL