No Congresso Nacional, mais de um terço dos integrantes da Frente Parlamentar Evangélica se declara católico. Já a Frente Parlamentar Católica conta com apenas metade de seus membros pertencentes, de fato, à tradição católica. O que soa como paradoxo teológico, no entanto, obedece a uma lógica política disseminada, reveladora das engrenagens que movem o Congresso atual.
No caso das frentes parlamentares cristãs, além das já mencionadas evangélica e católica, há pelo menos outras três com estatutos baseados em princípios morais cristãos confessionais: a Frente Mista Cristã e em Defesa da Religião, a Frente em Defesa da Vida e da Família e a Frente Mista Contra o Aborto. Embora distintas em nome, essas frentes compartilham membros, pautas e linguagens.
Convergem na sustentação de uma agenda cada vez mais consolidada: oposição ao aborto, recusa à educação sexual e combate à chamada ideologia de gênero, defesa de modelos tradicionais de família e promoção da liberdade religiosa como direito absoluto. A articulação entre confissões distintas não expressa aproximação teológica, mas aliança pragmática.
Interpretar esse fenômeno como uma idiossincrasia das frentes cristãs é um erro analítico. O que nelas se vê não é exceção, mas a expressão de uma lógica recorrente no funcionamento do Congresso.
Atualmente, existem mais de 290 frentes em funcionamento na Câmara dos Deputados. Muitas delas se sobrepõem em agendas, frequentemente com os mesmos parlamentares atuando em diferentes agrupamentos. Apenas nas áreas da saúde ou educação, por exemplo, é possível identificar ao menos três frentes distintas que compartilham objetivos semelhantes e mobilizam estratégias convergentes. Essa proliferação é um padrão mais amplo de organização política, no qual a criação de frentes se tornou tática de visibilidade, barganha e capilaridade institucional.
Segundo dados oficiais da Câmara dos Deputados, não apenas é comum que um parlamentar integre múltiplas frentes parlamentares, como essa prática atinge proporções surpreendentes: a média de adesão por parlamentar ultrapassa 15 frentes, revelando que a múltipla filiação é mais regra do que exceção.
Longe de representar um acúmulo fortuito, essa sobreposição expressa uma racionalidade política própria, em que o valor de uma frente não reside apenas em sua pauta declarada, mas em sua capacidade de se multiplicar, reiterar temas e projetar capital simbólico e institucional para seus signatários.
Esse modo de operar mostra uma característica marcante da política brasileira contemporânea: a proliferação de mecanismos institucionais que funcionam menos como espaços de deliberação e mais como palcos de exposição. As frentes parlamentares ilustram bem esse cenário. Em vez de organizar debates ou produzir consensos, elas servem, sobretudo, para marcar posição. Permitem que parlamentares associem seus nomes a causas de forte apelo simbólico, mesmo que pouco atuem efetivamente nelas. Nesse modelo, o gesto de adesão vale mais pela visibilidade que gera do que pelo compromisso que implica.
No caso das frentes religiosas, esse mecanismo se intensifica. O investimento retórico na moralidade cristã permite a parlamentares de distintas orientações partidárias ou confessionais um ponto comum de agregação. Trata-se de uma linguagem de fácil circulação, alta ressonância pública e baixa exigência doutrinária. Não importa tanto se o deputado é católico ou evangélico, mas se é capaz de sustentar publicamente uma postura de defesa da “família”, da “vida” ou da “fé”. A fronteira entre identidade religiosa e identidade política torna-se, assim, funcionalmente porosa.
Em um Congresso fragmentado, de baixa densidade partidária e forte personalismo, essa lógica mostra-se especialmente eficiente. Permite ampliar a presença institucional com baixo custo e alto retorno simbólico. As frentes religiosas não escapam a esse padrão. Ao contrário, o exemplificam. Interpretá-las apenas como expressão da força das religiões no Parlamento é desviar o foco: o que está em jogo é uma racionalidade política mais abrangente, que atravessa temas diversos e transforma qualquer pauta em plataforma de visibilidade, negociação e poder.
noticia por : UOL