sábado, 24, maio , 2025 09:41

Com bom ator, saga de imigrante na França não vira um dramalhão

“A História de Souleymane” é, na verdade, duas —a que ele vive como imigrante na França, vindo da Guiné, e a que ele deve contar para conseguir o visto de refugiado político.

A primeira é mais próxima de nós. Ele trabalha fazendo entregas a domicílio, com sua bicicleta. Uma cena familiar para quem vive em grandes cidades, no Brasil, por exemplo. Como a cena é dolorosa em si, o filme se esforça apenas para que acreditemos nela, tal como narrada.

Com isso, temos um filme que lembra “Ladrões de Bicicletas”, de De Sica. Quer que acreditemos que esta é a verdade da vida dos imigrantes porque seu autor, talvez sinceramente, assim o crê. “Ladrões de Bicicletas”, contudo, foi feito há quase 80 anos, e Boris Lojkine, diretor do filme, compreenderá que o espectador contemporâneo olhe para “Souleymane” com alguma desconfiança.

O filme se esforça para narrar um cotidiano não longe do, vamos dizer, verossímil. Ninguém dirá, porém, que é novo. Se algo de novo existe no filme vem de certos problemas imediatos enfrentados por Souleymane: ele é um trabalhador clandestino (não tem documentos de trabalho), usando a identidade de um outro imigrante. Por esse uso, ele paga ao sujeito uma quantia nada desprezível e tem um medo enorme quando, por acaso, é chamado por algum policial.

Pior, ele deve dinheiro a outro imigrante legalizado, falsifica certos documentos e inventa uma história falsa —e supostamente boa— para contar no escritório de imigração, a de que ele seria perseguido em seu país por razões políticas.

Em linhas gerais, o filme é bastante honesto. Procura falar da situação de precariedade da vida dos imigrantes na França, sem fazer grandes dramas. É verdade que isso é bastante corrente no cinema francês. E que a situação de Souleymane na França, por terrível que seja, é dez vezes melhor do que seria para quem teve a má ideia de procurar os Estados Unidos de Trump, por exemplo.

Mas estamos longe do paraíso. Por exemplo: para chegar a tempo até a condução que o levará à residência coletiva onde vive, enfrenta uma espécie de gincana. Embora haja subtramas —como a mãe doente na Guiné, e a noiva, que ainda espera pelo retorno de Souleymane, mas já recebeu outra proposta de casamento—, no fim, o que mantém o interesse no filme é saber como ele se sairá na entrevista final. Pois o espectador torce por ele, claro.

“A História de Souleymane” tem um mérito claro, que consiste em nunca permitir que a narrativa descambe para o dramalhão, ao mesmo tempo em que descreve uma situação bastante dramática. Ela coincide em grande medida com a de Abou Sangaré, que também atravessou a África, de Guiné à Argélia, dali à Líbia, antes de chegar à França, onde viveu como imigrante clandestino, e cuja presença é outro ponto notável do filme.

De modo que o fato de destacar-se como ator central de “Souleymane”, de ganhar o prêmio César de revelação masculina do cinema francês e tudo mais conforma uma história tipo de Cinderela. Sim, pelo menos por ora ele vive um conto de fadas. Seus colegas imigrantes, nem tanto.

Ele corre o risco de a carruagem virar abóbora, é verdade, caso seus dotes não sejam confirmados por trabalhos futuros. Para outros imigrantes ilegais, o risco é o de deportação. Talvez a sua interpretação (notável na parte final, diga-se) seja o que mais justifique a presença do filme numa seção de prestígio do Festival de Cannes, como a Um Certo Olhar.

noticia por : UOL