domingo, 1, junho , 2025 08:19

“Che Guevara africano”: quem é o novo ditador queridinho da esquerda brasileira

Uma atmosfera antidemocrática deu o tom da cerimônia em comemoração ao 80º aniversário da vitória soviética sobre a Alemanha Nazista na Segunda Guerra. Recepcionada com toda pompa pelo anfitrião Vladimir Putin, a comitiva internacional reuniu um verdadeiro “quem é quem” da galeria de líderes autocratas do planeta. 

Além de Xi Jinping (China), Nicolas Maduro (Venezuela) e Miguel Díaz-Canel (Cuba), o encontro do último dia 9, em Moscou, contou com a presença expressiva de ditadores africanos — um reflexo da influência russa naquele continente. 

O destaque desse grupo foi uma figura de mais de 1,80 metro de altura, usando uniforme de combate com detalhes camuflados e uma boina vermelha: o capitão Ibrahim Traoré, autointitulado “presidente interino” de Burkina Faso.

A condição de interinidade se dá pelo fato de Traoré ter liderado, em setembro de 2022, um golpe de Estado e instaurado um alegado governo de transição, com a justificativa de combater a chamada insurgência jihadista — marcada pela atividade violenta de grupos muçulmanos extremistas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. 

Impulsionado por uma crescente campanha de promoção digital, ele se apresenta como um símbolo de soberania africana e resistência anti-imperialista. Essa narrativa tem encantado os setores mais nacionalistas da esquerda, que o exaltam a ponto de compará-lo a figuras como Che Guevara e Thomas Sankara (revolucionário marxista e ex-presidente de Burkina Faso). 

Mas não se engane: o líder “temporário”, que aparece sentado ao lado de Lula no evento russo, é um ditador como qualquer outro. 

“Eleições não são prioridade” 

Logo após o golpe, Ibrahim Traoré dissolveu a legislatura, suspendeu a constituição e concentrou o poder em si mesmo e numa junta militar de aliados próximos. “Eleições não são uma prioridade”, disse na época. 

Sua promessa de restaurar a democracia na metade de 2024 foi descumprida em maio daquele ano, quando a junta anunciou o prolongamento do período de transição até 2029 — e a permissão para que Traoré concorra em futuros pleitos presidenciais. 

As manobras para mantê-lo no poder, no entanto, não pararam por aí. O capitão tem sido acusado de censurar a imprensa oposicionista e coagir adversários políticos, ativistas da sociedade civil e até magistrados. 

Em outra frente, ele aumentou o controle estatal sobre a mineração de ouro, recurso-chave de Burkina Faso, e redirecionou impostos para o setor de defesa. Também rejeitou empréstimos do FMI e do Banco Mundial, alegando buscar o fim da dependência financeira do país (o tipo de estratégia nacionalista que empolga militantes de esquerda de todos os lugares do mundo). 

Para combater os jihadistas, Traoré estimulou o fortalecimento de milícias, muitas delas incrementadas a partir do recrutamento forçado, conforme afirmam organizações internacionais de direitos humanos. Também há relatos sobre a forte presença de formações paramilitares russas no país, que dão suporte ao regime para desarticular a oposição e proteger a liderança de Traoré. 

A mais atuante delas, no momento, é a Africa Corps, que assumiu várias operações do Grupo Wagner após a morte de seu líder, Yevgeny Prigozhin, em 2023. Segundo o Departamento de Estado dos EUA, esses e outros coletivos de mercenários funcionam como proxies do Kremlin — ou seja, servem aos interesses de Putin na região, embora tenham uma fachada de empresas privadas.

Plenos poderes 

Antiga colônia francesa conhecida como Alto Volta, Burkina Faso vive um clima permanente de instabilidade política desde a independência, em 1960. 

Seu último presidente escolhido pelo voto direto, Roch Marc Christian Kaboré, assumiu em 2016 e até conseguiu se reeleger. Mas falhou ao conter a insurgência jihadista que tomou conta do país e foi deposto em 2022. 

Naquele ano, Burnika Faso passou por dois golpes de estado. O primeiro, em janeiro, teve como líder o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, que prometeu restaurar a segurança nacional, porém fracassou de forma retumbante — em poucos meses, os rebeldes tomaram cerca de 40% do território. 

E aí entra a figura de Ibrahim Traoré. O capitão, que inicialmente apoiou Damiba, comandou um novo golpe em setembro, acusando o antecessor de incompetente e assumindo plenos poderes na condição de “chefe do Movimento Patriótico para Salvaguarda e Restauração”.  

Colapso humanitário 

Acontece que, sob o regime de Traoré, a crise humanitária em Burkina Faso se agravou. Cada vez mais dispostos a expandir seu controle territorial, e impor interpretações extremas da sharia (o sistema que orienta a vida dos muçulmanos), os grupos radicais intensificaram suas ações violentas. 

Esse cenário instável ainda conta com uma camada de tensão étnica, especialmente entre os povos fulanis e mossis. Mais associados aos jihadistas, os fulanis viraram os alvos preferencias dos mossis, que compõem boa parte das milícias pró-governo. 

Ambas as comunidades são islâmicas e seus braços armados promovem uma brutal repressão a um terceiro grupo, formado pela principal minoria religiosa da região: os cristãos (cerca de 23% da população). 

Mais de seis mil pessoas, de diferentes credos e etnias, morreram em decorrência desses conflitos apenas em 2024, de acordo com organizações como Human Rights Watch e Concern Worldwide, dedicadas à pesquisa sobre violações aos direitos humanos. Muitas dessas vítimas são colocadas “na conta” de Ibrahim Traoré, criticado por sua resposta agressiva e indiscriminada contra civis suspeitos de colaborar com os insurgentes. 

Dados dessas entidades mostram que, somente em fevereiro daquele ano, soldados do exército “oficial” executaram sumariamente 233 civis acusados de ajudar jihadistas (entre eles, 56 crianças). Em outro massacre, ocorrido no último mês de março, cerca de 130 fulanis foram assassinados por tropas milicianas ligadas ao regime de Traoré. 

Esse colapso resultou em um deslocamento massivo de pessoas. Mais de 2 milhões de burquinenses (cerca de 10% da população) já se viram obrigados a se transferir para outras regiões do país, sempre enfrentando condições precárias nas áreas de acolhimento. Enquanto isso, outros 118 mil buscaram refúgio em nações vizinhas, também encontrando dificuldades em solo estrangeiro.

Embaixada francesa em Burkina Faso incendiada após o golpe de estado comandado por Ibrahim Traoré, em 2022Embaixada francesa em Burkina Faso incendiada após o golpe de estado comandado por Ibrahim Traoré, em 2022 (Foto: Assane Ouedraogo/EFE/EPA)

Culto digital 

A imagem de Ibrahim Traoré, no entanto, vem sendo objeto de uma espécie de “culto digital” mundo afora. Graças a um investimento pesado em propaganda, o governo tem espalhado, com cada vez mais intensidade, vídeos virais que glorificam seus feitos e o posicionam como o último grande herói africano contra o colonialismo. 

Muitas dessas mensagens trazem informações falsas ou exageradas, e são amplificadas por “comentaristas de geopolítica” conhecidos por sua participação em redes de desinformação russas e chinesas. 

É o chamado “populismo algorítmico”, ou “tecnopopulismo”, uma nova forma de soft power (potencial de influenciar outros países sem o uso da força militar ou econômica) capaz de validar líderes autoritários e até normalizar golpes de estado e regimes repressivos. 

Não à toa, a fama de Traoré como ícone anti-imperialista e pan-africano vem ressoando em outros países do continente, especialmente na região do Sahel — faixa semiárida ao sul do Saara de importância estratégica para a Rússia e a China, devido a uma combinação de fatores geopolíticos, econômicos e militares. 

O capitão hoje é o principal promotor da Aliança dos Estados do Sahel, formada por Burkina Faso, Mali e Níger. Os três países marcam uma posição de distanciamento com relação às potências ocidentais e à Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (alinhada, segundo seus líderes, ao “imperialismo”). E, por “coincidência”, são governados por juntas militares que deram golpes de estado nos últimos anos. 

“Manto de difamação” 

Chegada num ditador, a esquerda do Brasil também vem descobrindo o “fenômeno Traoré”. Textos acadêmicos e da imprensa militante exaltam sua juventude (ele tem apenas 37 anos), formação ideológica (o ditador integrou uma associação marxista de estudantes) e pose de revolucionário. 

“Líder de Burkina Faso rompe com o Ocidente, expulsa tropas francesas, revisa contratos de mineração e impulsiona aliança soberanista no Sahel”, afirma o site Brasil 247, um dos pioneiros da esquerda brasileira.

“Seu ‘pecado’? Enfrentar o colonialismo, defender a autodeterminação africana e reivindicar os ricos recursos do continente para seu povo”, diz o Diálogos do Sul Global, publicação eletrônica “comprometida com a multipolaridade e o anti-imperialismo”.

Para o site Pátria Latina, cuja lista de parceiros inclui agências noticiosas da Rússia e de Cuba, “seu discurso nacionalista e anticolonial ecoa em outros países africanos e inspira setores da juventude que desejam um continente menos dependente, mais unido e capaz de decidir seu destino com as próprias mãos”.

“Como muitas outras transformações revolucionárias do passado, o que está acontecendo em Burkina Faso está envolto em um manto de silêncio e difamação por parte das grandes potências ocidentais”, afirma um artigo publicado pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina. 

Lula ao lado de Ibrahim Traoré e outros ditadores africanos durante o evento de comemoração aos 80 anos do Dia da Vitória, em Moscou, no início do mêsLula ao lado de Ibrahim Traoré e outros ditadores africanos durante o evento de comemoração aos 80 anos do Dia da Vitória, em Moscou (Foto: Alexei Nikolski/Kremlin/RIA Novosti)

Festejado pela comunicação de Lula 

Mas nada se compara, em termos institucionais, ao conteúdo publicado no último dia 25 pela Agência Brasil, portal de notícias vinculado à estatal federal Empresa Brasil de Comunicação (EBC) — e, portanto, gerido atualmente pelo governo de Lula e do PT. 

“Líder anti-imperialista em Burkina Faso, Traoré se destaca na África” é o título da matéria, que recorre a fontes para exaltar a figura do ditador africano. Como o historiador Eden Lopes da Silva, para quem o capitão burquinense “se afirma como um governante de caráter nacionalista e se identifica em solidariedade com vários países que lutam pela sua soberania”. 

Ou o jurista Hugo Albuquerque, que o compara com Che Guevara e o coloca como herdeiro da “cultura política socialista iniciada por Thomas Sankara”. “Intelectuais que sobreviveram, mesmo depois da derrubada de Sankara, continuaram militando e se articulando, inclusive com participação nas Forças Armadas, que é a grande instituição nacional no fim das contas”, diz. 

O repórter Lucas Pordeus León, autor do texto, lembra que o governo de Burkina Faso é “acusado de ter se tornado uma ditadura”. Mas, segundo ele, especialistas não consideram os regimes anteriores do país “democracias liberais como conhecemos no Brasil”. 

Eden Lopes da Silva justifica: “Evidentemente que alguns países podem tender a um regime um pouco mais autoritário, e outros podem tender a reformas sociais e políticas profundas que os transformem em democracias de novo tipo. É o caso, por exemplo, pelo que observo, de Burkina Faso”.

Essa história não é nova. Depois de figuras como Che, Fidel, Chávez e Maduro, a esquerda brasileira parece ter outro herói revolucionário ascendente para chamar de seu. Ainda vamos ouvir falar mais desse “democrata de novo tipo” chamado Ibrahim Traoré.

noticia por : Gazeta do Povo