domingo, 1, junho , 2025 12:25

'As Perfeições' é livro superficial e bobo como seus protagonistas

É só “de maneira abstrata” que os protagonistas de “As Perfeições”, italianos radicados na Berlim dos anos 2010, associam os predicados da cidade às catástrofes históricas que proporcionaram os amplos espaços, o aluguel barato e a estética hipster —misto de elegância minimalista e destroços autênticos— que tanto lhes agradam.

Ali vivem designers como eles, artistas, doutorandos, todos europeus e americanos de 25 ou 30 anos, que formam uma espécie de rede. É também sem “plena consciência” que Anna e Tom, instintivamente copiando esse grupo, aprendem a cozinhar pratos sofisticados e a cuidar das plantas de seu apartamento, que brilham no anúncio do Airbnb.

Quando os preços começam a subir e Berlim a se pasteurizar, os dois intuem “de modo pouco aprofundado” que são parte da gentrificação.

Apesar de sentirem que a chegada de refugiados lhes toca apenas, mais uma vez, “de maneira abstrata”, a crise migratória de 2015 contribui para a sensação de descompasso entre expectativa e realidade que define a vida de Anna e Tom.

Essa entidade que se move em “As Perfeições” não convence que é mais do que uma garatuja sociológica —dizer “crônica” seria exagero— de uma corte que ignora os próprios privilégios. Já sabemos, afinal, que o casal só compreende o mundo de modo pouco aprofundado ou vago.

Pouco aprofundada e vaga, é claro, é a voz narrativa, confeccionada cuidadosamente para manter Anna e Tom sob controle, em sua função de sintetizar a figura do millennial tragado pelas mudanças existenciais trazidas pela difusão da internet. Não é tarefa fácil, e Latronico está à altura. Resta saber se tanto trabalho vale a pena.

“As Perfeições” reproduz (o autor diz homenagear) o modelo formal do romance “As Coisas”, que George Perec publicou em 1965, com o privilégio da descrição em detrimento de ações e diálogos —estes inexistentes.

No entanto, o que era parte de um projeto estético mais amplo na obra de Perec —inserida num contexto francês de intensa experimentação formal, esgotado há muito— é retomado na novela de Latronico a serviço da crítica professoral à superficialidade dos engajamentos da geração Y.

O livro é dividido em “Presente”, “Imperfeito”, “Futuro” e “Remoto”, títulos que refletem literal e didaticamente os tempos verbais que neles predominam e a tentativa de escapar ao fluxo entediante.

“Imperfeito” toma quase todo o livro na infinita contextualização de um drama que nunca chega; “Futuro” e “Remoto” demonstram que só há satisfação na esperança ou na nostalgia das imagens no Instagram. O “Presente” é uma imagem congelada em um site.

Em dado momento, o autor italiano escreve que havia uma “realidade tangível, que os cercava; havia as imagens. E estas também os cercavam”. O leitor pensa: “Ok, boomer!”

Mas Latronico nasceu em 1984 e mora em Berlim, e seu narrador é despersonalizado o bastante para reconhecermos nele uma voz que se esforça para afirmar que, por observar com distanciamento, é superior a tudo aquilo.

É difícil entender o sucesso que o livro vem obtendo na recepção internacional, mas nota-se o esforço de destacar a crítica aguda a um modo de vida responsável por tornar pastiche a própria autenticidade buscada. Esse esforço parece querer demonstrar que quem o empreende está fora dessa presepada —ou pelo menos tem a consciência de que se reconhece ali, mas de forma racional e autocrítica.

Ou talvez o mercado esteja tão saturado das variantes autoindulgentes da autoficção que recebeu com alívio a voz áspera e desapegada de Latronico. Essa celebração é preguiçosa: como críticos já observaram alhures, ambas as expressões são parte da mesma disposição de forjar livros que deem conta da realidade, num projeto que tem mais de má etnografia do que de boa literatura.

Afinal, o que a ficção pode hoje fazer de melhor é mostrar que não há nada mais contemporâneo do que sequer saber por onde começar a entender nosso tempo. Anna e Tom mereciam um narrador que tivesse tão pouca consciência do que está acontecendo quanto eles.

noticia por : UOL