Após o escândalo das fraudes dos descontos de associações e sindicatos nos benefícios do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), aposentados e pensionistas afirmam ter encontrado outros débitos não autorizados, agora ligados a seguradoras e clubes de benefícios. Os descontos indevidos não são feitos diretamente na folha de pagamento do INSS, como na fraude das associações, mas sim quando o pagamento do benefício entra na conta bancária.
Segundo as denúncias, os segurados vêm denunciando na Justiça ou em páginas de reclamação na internet débitos automáticos não autorizados.
Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostram que três dessas empresas —Grupo Aspecir (União Seguradora e Aspecir Previdência), Sebraseg/Binclub e Paulista Serviços— somam mais de 45 mil processos judiciais pendentes.
À Folha as empresas negam irregularidades e, assim como os bancos, afirmam operar de acordo com as regras do Banco Central. O INSS diz que não tem acesso a esse tipo de movimentação financeira e a Susep (Superintendência de Seguros Privados) informa estar investigando casos.
A aposentada Selma Lisboa, 71 anos, foi uma das vítimas de descontos indevidos que ocorriam em sua aposentadoria após o recebimento de seu benefício no Bradesco. Os débitos, de R$ 69,90 por mês, começaram em maio de 2023 e eram realizados pela empresa Eagle Sociedade de Crédito Direto.
Familiares de Selma contam que, em 2024, passaram a ocorrer também descontos em nome da Aspecir. O filho da aposentada diz que entrou em contato com o banco e a gerente informou que sua mãe havia autorizado os descontos, mas a aposentada afirma que nunca reconheceu essa autorização.
Para cancelar os débitos, Selma precisou da ajuda do filho, que conseguiu bloquear a autorização para débitos automáticos no final do ano passado. Ele diz que não tentou recuperar os valores descontados por acreditar que o processo seria muito complicado e que o dinheiro dificilmente seria devolvido.
Vera, também de 71 anos, conta que descobriu os descontos em seu benefício por acaso. “Estava sempre com menos dinheiro. Recebo salário mínimo. Falei com o banco e eles bloquearam”, diz a segurada, que preferiu não divulgar seu nome completo.
Os débitos ocorriam em sua conta no Bradesco e, segundo ela, por seis meses, valores eram retirados assim que a aposentadoria era depositada: R$ 62,60 em nome da Suda Club e R$ 59,65 em nome da Pserv (Paulista Serviços).
“Comecei a brigar com o banco, porque não entendia como eles autorizaram tirar da minha aposentadoria. Depois de muita insistência, bloquearam a cobrança. Isso foi em 2023”, afirma. O total descontado chegou a R$ 1.222,25, valor que ela diz não ter conseguido reaver até hoje.
Vera relata ainda que o mesmo aconteceu com o marido, que teve descontos mensais de R$ 88, registrados em extratos do Itaú.
Outra vítima, que preferiu não se identificar, relata que a mãe, de 70 anos, teve três débitos consecutivos realizados por uma seguradora entre setembro e novembro do ano passado. No total, ela afirma que R$ 235 foram retirados da conta bancária dela, além da cobrança de taxas de juros pelo uso do cheque especial.
Segundo o filho, sua mãe saca o benefício assim que o valor é creditado. No entanto, como os débitos ocorriam imediatamente após o depósito, o saldo ficava negativo sem que ela percebesse. A seguradora responsável devolveu os valores cobrados, mas o banco se recusou a estornar os juros.
Uma reclamação foi registrada no Banco Central, solicitando esclarecimentos e ressarcimento. Em nenhum momento teriam sido apresentadas provas de que a aposentada teria aceitado os descontos, afirma.
Jefferson Aires, auxiliar administrativo, responsável por cuidar da aposentadoria da mãe, de 66 anos, conta que, no dia 26 de agosto de 2024, recebeu uma notificação no aplicativo do banco informando que, a partir do mês seguinte, haveria um desconto de R$ 78 no benefício em nome da Aspecir.
Aires tentou contato com a empresa por telefone e email, mas diz que nunca obteve resposta. Apesar do aviso, o desconto não foi efetivado. Ele diz seguir monitorando os extratos de pagamento da mãe para garantir que nenhum débito indevido seja realizado.
Silvio Fortunato, 75, é aposentado e diz enfrentar há quase um ano descontos recorrentes em sua conta bancária. Segundo o filho, os débitos são realizados por mais de uma empresa e começaram em 2023.
Com a ajuda de uma gerente do Itaú, a família conseguiu estornar três meses de descontos e bloquear os lançamentos futuros. Mesmo assim, em alguns momentos, os descontos voltam a aparecer.
“Temos que ir à agência sempre que surge um novo desconto. Eles estornam, mas não resolve. Daí passa um tempo e aparece outro, às vezes com outro nome. Aí é o mesmo processo: falar com a gerente, entrar no aplicativo e bloquear de novo o débito automático”, relata o filho do aposentado.
A situação, segundo ele, é especialmente grave porque o pai recebe apenas um salário mínimo.
Como funcionam os descontos?
O débito automático feito por seguradoras, clubes de benefícios e empresas do setor financeiro é diferente dos descontos de mensalidades associativas que vêm sendo investigados pela Polícia Federal e a CGU (Controladoria-Geral da União), na operação Sem Desconto.
No caso das mensalidades associativas, o valor era descontado diretamente da folha de pagamento do INSS, antes mesmo de o benefício ser creditado, pois havia um convênio entre essas associações e o governo.
Nestes novos casos, de seguradoras e clubes de benefícios, o valor é debitado da aposentadoria ou pensão logo que é pago pelo INSS ao segurado, por meio da conta bancária em que recebe o benefício.
Nos dois casos, no entanto, os descontos deveriam ter sido autorizados pelos segurados. Para quem não reconhece mensalidades associativas, é possível bloquear o valor por meio do aplicativo ou site Meu INSS.
Em caso de débito automático, é preciso fazer o bloqueio diretamente na seguradora ou no clube de benefícios.
Qual é o número de reclamações?
Plataformas de reclamação como o Reclame Aqui registram centenas de queixas relacionadas a descontos indevidos. Na Justiça, segundo o CNJ, somente três empresas somam 45 mil processos.
A Aspecir Previdência, empresa do mesmo grupo da União Seguradora, tem 450 reclamações em seis meses —metade delas envolvendo débitos não autorizados. A União Seguradora, por sua vez, acumula 34 queixas no mesmo período, sendo 84% por cobranças indevidas.
A Binclub tem 261 reclamações, das quais 59,75% se referem a cobranças não reconhecidas. A Sebraseg teve 252 registros, com 62,01% das queixas relacionadas ao mesmo tipo de problema. Já a Paulista Serviços soma 291 reclamações, sendo 56,96% também por cobranças indevidas.
O que dizem as empresas?
A Paulista Serviços diz que atua exclusivamente na intermediação técnica da cobrança autorizada por outras empresas. “Não operamos descontos em folha de pagamento de benefícios do INSS, tampouco temos relação com consignações”, diz em nota.
“Mantemos rígidos controles sobre os eventuais contatos dos consumidores finais e de índices de reclamações que, há cerca de dois anos, se mantêm inferior a 2,5% da carteira, e respondemos integralmente eventuais questionamentos. Lamentamos qualquer transtorno relatado e reforçamos nosso compromisso com a transparência e a boa-fé”, completa.
A União Seguradora, empresa do Grupo Aspecir, diz que toda a comercialização de seus seguros é feita por corretores registrados, e que, ao identificar qualquer insatisfação ou arrependimento por parte do cliente, realiza o ressarcimento integral dos valores pagos.
Afirma ainda, em nota, que desde sua fundação, se pauta pelo compromisso com a ética, a transparência e a responsabilidade nas relações com seus clientes, parceiros e órgãos reguladores.
A Sebraseg/Binclub afirma nunca ter feito descontos em folha de pagamento do INSS. Com relação à quantidade de processos em andamento na Justiça, diz que seu escritório assumiu as demandas em janeiro de 2025, realizou auditoria interna e afastou diretores que estão sob suspeita de irregularidades, inclusive com furto e manipulação de dados.
“Os referidos diretores se aproveitaram da doença (câncer) que padece o presidente das empresas, senhor Gelci, e cometeram irregularidades em várias documentações de clientes”, informa a empresa em nota. A Binclub também diz que está reembolsando todos os clientes. “Ressaltamos que nenhum cliente ficará lesado, bem como todas as medidas estão sendo tomadas para solucionar a situação”, adiciona.
Em nota, a Eagle Sociedade de Crédito diz que atuou como prestadora de serviço de arrecadação para terceiros, utilizando procedimentos tecnológicos para prestação deste serviço e de convênios firmados com instituições bancárias.
“A Eagle SCD não realizava ou realiza a comercialização de produtos de assistência, seguros, ou qualquer outro produto similar a aposentados e pensionistas do INSS. Informamos ainda que optamos por suspender a prestação do serviço de cobrança a terceiros nessa modalidade de débito em conta, notificamos todos os contratantes e suspendemos todos os débitos existentes”, informa a empresa.
A Sudaclub, em nota, diz que está ciente e que não há qualquer ligação entre a empresa e os descontos relacionados ao INSS. “Cumpre-nos salientar que toda e qualquer situação relacionada aos nossos contratos são resolvidas tanto de forma administrativa quanto judicial, se acaso houver necessidade. Sempre com a intenção de se evitar qualquer desgaste de nossos clientes”, afirma a empresa.
A empresa também diz seus contratos “são pautados na ética comercial e boa-fé, além de sempre estarmos atentos às Leis Consumeristas em todas as relações comerciais dos ramos que atuamos”.
O que diz o INSS?
Em nota, o INSS diz que não tem acesso nem controle sobre movimentações financeiras em contas bancárias de aposentados e pensionistas.
“Débitos automáticos relacionados a seguros, clubes de benefícios ou outros serviços são operações de natureza bancária, contratadas diretamente entre o beneficiário e as instituições financeiras, sem qualquer relação com o pagamento do benefício previdenciário”, diz o instituto.
Caso identifique algum débito não reconhecido, a autarquia afirma que o beneficiário deve procurar imediatamente sua instituição financeira para contestar a cobrança e, se necessário, acionar os órgãos de defesa do consumidor.
O que diz a Susep, que fiscaliza seguradoras?
Em nota, a Susep (Superintendência de Seguros Privados), autarquia responsável por fiscalizar as seguradoras, informou que há ações de supervisão em andamento para apurar indícios de contratações não reconhecidas por consumidores em algumas das empresas sob sua supervisão.
O órgão destacou que eventuais medidas serão tomadas à medida que essas apurações avancem ou sejam concluídas. Se forem constatadas infrações que extrapolem sua esfera de atuação, a Susep afirma que encaminhará os indícios e documentos às autoridades competentes.
O que dizem os bancos?
Em nota, o Bradesco afirma que segue todas as normas do Banco Central relativas ao serviço de débito automático em conta-corrente.
“Visando maior transparência, o Bradesco adota a prática de comunicação prévia aos clientes via push e pelos canais de relacionamento, além de apresentar o agendamento em lançamentos futuros do extrato de conta-corrente, permitindo ao cliente conhecer, concordar ou ainda contestar, quando for o caso, sendo atendido de imediato em situações que requeiram o eventual cancelamento”, afirma o banco.
O Itaú Unibanco também diz todas as diretrizes do BC e informa que os clientes são notificados antecipadamente sobre eventuais lançamentos de débitos enviados por instituições intermediárias. Com isso, têm a possibilidade de solicitar o cancelamento em seus canais de atendimento.
“Diante de contestações, o banco acata o pedido de cancelamento do débito e prossegue com o estorno nos casos devidos”, diz o banco.
Em nota, a Febraban (Federação Brasileira de Bancos), afirma que a federação e seus bancos associados não compactuam com qualquer prática ilícita ou abusiva contra o consumidor e seguem integralmente as normas do Banco Central relativas ao serviço de débito automático em conta corrente.
“Especificamente, a resolução 4.790 do CMN (Conselho Monetário Nacional), de março de 2020, determina que as instituições financeiras devem aceitar os comandos de débitos interbancários, comandados por outra instituição financeira”, diz federação.
A entidade afirma ainda que essa regra estabelece caber exclusivamente às instituições que enviam esses pedidos obterem autorização junto aos clientes. Da mesma forma, o CMN determina que, caso não haja reconhecimento do débito, o cliente deve procurar o banco que originou essa despesa e pedir a suspensão do pagamento.
A Febraban diz também que tem uma agenda permanente com o Banco Central e que o aprimoramento da resolução 4.790 já foi solicitado.
“Apesar da existência dessa regra, diante das reclamações de clientes que não reconhecem os débitos, alguns bancos estão bloqueando de imediato o débito futuro e realizam as tratativas para solução e esclarecimento junto as empresas”, adiciona.
O que fazer ao identificar uma cobrança indevida?
Em casos de descontos indevidos, a Susep indica que os consumidores devem:
- Entrar em contato com a seguradora responsável, por meio dos canais oficiais, para verificar a origem da cobrança
- Caso não obtenham solução, registrar uma reclamação na plataforma Consumidor.gov.br. A ouvidoria da seguradora terá até dez dias para responder
noticia por : UOL