sexta-feira, 6, junho , 2025 04:20

Israel age para matar palestinos de fome em Gaza, num crime desumano, diz filho de Herzog

O engenheiro Ivo Herzog, 58 anos, decidiu escrever um artigo para criticar duramente os ataques de Israel à Faixa de Gaza (leia ao final do texto). Ele explica as razões nesta entrevista à coluna.

Filho do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que foi assassinado pela ditadura militar brasileira em 1975, Ivo tem origem judaica: seus avós paternos, Sigmund e Zora Herzog, fugiram da antiga Iugoslávia no período de ascensão do nazismo, trazendo junto o filho, Vlado.

Os familiares que ficaram morreram, todos, em campos de concentração. Seu nome, Ivo, é homenagem a um dos primos mortos. Ele diz que a família passou fome e que fotos antigas mostram seu pai, criança, como “um esqueletinho”.

Os avós, depois, foram entusiastas da criação de Israel e chegaram a colaborar financeiramente para a sua construção.

Por isso, diz, ele não pode se calar ao ver “os crimes de guerra” e a “crueldade” do governo de Israel. “Há uma ação deliberada para sufocar e matar a população civil de Gaza por inanição, por falta de cuidado”, afirma. “É absolutamente desumano. Mesmo a guerra tem regramentos e limites definidos.”

Fundador do Instituto Vladimir Herzog, Ivo afirma não temer críticas de setores da comunidade judaica que apoiam os atos de guerra do atual governo de Israel de forma incondicional. “Quando a gente faz algo depois de uma reflexão profunda e acredita que está fazendo a coisa certa, não pode deixar de fazer porque alguém pensa diferente de nós.”

CRIME

Por que você decidiu se manifestar de forma mais incisiva sobre o que está acontecendo em Gaza?

Eu estava me sentindo muito mal vendo crianças passando fome, pele e osso, milhares delas morrendo, milhares sendo amputadas, e sabendo que existe ajuda para esse povo, mas que ela está sendo negada [por Israel, que determinou bloqueio ao território].Não houve racionalização. Veio de dentro de mim. Se eu ficar quieto, estou normalizando o que está acontecendo em Gaza. Não, não é normal.

Uma frase do meu pai, que está inclusive no túmulo dele, sempre foi um guia para mim: “Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados.” Se você está vendo algo errado, que te incomoda, tem que botar isso para fora. Tem que falar. Ou você está perdendo a sua humanidade.

Há uma ação deliberada para sufocar e matar a população civil de Gaza por inanição, por falta de cuidado. O que o governo de Israel está fazendo contra a população de Gaza é absolutamente desumano.

Não é apenas a minha opinião. Centenas de organismos internacionais denunciam a ação do governo de Israel como um crime de guerra. Como crimes contra a humanidade.

LIMITES


Defensores de Israel dizem que o país foi atacado primeiro por um ato selvagem do Hamas, e que tem o direito de se defender. Isso pode ser uma justificativa?

Eu não tenho competência nem a intenção de ser um árbitro sobre a questão do Oriente Médio. Mas tenho total solidariedade com o povo de Israel. Os atos do Hamas são injustificáveis e têm que ser condenados de maneira firme e objetiva. Agora, eu também tenho solidariedade ao povo da Palestina. E, da mesma maneira, eu condeno toda a violência que o governo de Israel vem cometendo contra a população palestina.

O Hamas atacou primeiro, Israel atacou em segundo. Nada disso justifica. Talvez justifique a reação de Israel no início da guerra, há mais de um ano.

Mas chegar ao ponto de, hoje, Israel impedir a ajuda humanitária à população civil de Gaza, é injustificável. De novo: é um crime de guerra. Guerra é uma coisa horrorosa que existe na história da humanidade. Mas mesmo a regra tem regramentos e limites definidos.

Não se tortura prisioneiros. Não se deixa prisioneiros passarem fome. Vimos crimes de guerras em outros conflitos. Como a perseguição nazista aos judeus, os campos de concentração. E os mandantes daquele governo [de Hitler na Alemanha], no fim da guerra, foram julgados pelos tribunais e condenados. Não pela guerra, mas pelos crimes contra a humanidade.

A guerra existe. Mas a crueldade e a desumanidade contra a população civil é outra dimensão. Nenhum de nós pode ser conivente. E o silêncio é uma forma de conivência.


O que pensa da proposta de Donald Trump de transformar o território de Gaza em uma Riviera?

Israel está destruindo toda a infraestrutura de Gaza. Está aterrorizando e matando a população de fome, de sede e de falta de cuidados médicos. Está criando uma situação insustentável para que de repente aquela população opte até por deixar o território se essa for a opção oferecida para que ela possa sobreviver.

Não tenho a resposta para a solução do conflito. Mas, a princípio, eu condeno você tentar criar uma situação onde as pessoas não possam sobreviver para atingir os seus objetivos. Tenho dificuldade de não olhar para isso com muita repulsa.

COBERTURA

Você já disse que o conflito não está tendo o destaque que merece na imprensa.

Não me refiro só à imprensa brasileira. De maneira geral, a questão [histórica] do conflito no Oriente Médio, de Israel e da Palestina, é um assunto sensível. Quando o atual conflito começou, há mais de um ano, fomos pressionados por parceiros, pessoas ligadas ao nosso conselho [do Instituto Vladimir Herzog], a nos posicionarmos. E a gente se posicionou. Fizemos uma nota muito equilibrada. Eu digo até que é uma nota fraca de conteúdo. E, mesmo assim, a gente tomou críticas fortes.

De quem?

De áreas, vamos dizer assim, mais conservadoras. De um lado, de outro. Alguns críticos pediam que fôssemos mais incisivos. Mas, se isso ocorresse, seríamos criticados pelo outro lado. Trazendo a resposta para a sua pergunta, existe uma pressão corporativa para que se apoie as políticas norte-americanas.

Os EUA sistematicamente votam com Israel na ONU. Medidas de condenação que outros países tentam aprovar são vetadas. Você é jornalista, eu navego no mundo do jornalismo. E a gente faz a pergunta: existe uma imprensa livre? Alguém paga a conta da imprensa. E posicionamentos que deveriam ocorrer pelo conceito humanista acabam não tendo espaço porque quem sustenta o jornalismo faz pressão para que não se fale sobre isso.





Se eu ficar quieto, estou normalizando o que está acontecendo em Gaza. Não, não é normal. Há uma ação deliberada de Israel para matar a população civil por inanição. É um crime de guerra

MUROS

Você já esteve em Israel?

Eu visitei o país em 2012, a convite do grupo Amigos de Israel, que organizava uma série de seminários para jornalistas da América do Sul. Foi uma experiência muito rica. Passamos dez dias em Jerusalém, ouvindo pessoas de direita, da extrema-direita, da esquerda, da extrema-esquerda, membros do governo de Israel, representantes dos palestinos.

E deu para entender que é uma questão… qual é a resposta? Qual é a solução para trazer a paz? Eu não sei. Mas deu para ver que a gama de pensamentos é muito ampla, e vai desde os que acreditam na existência de dois estados [Israel e a Palestina] até os que pensam “para eu ser feliz, tenho que eliminar o outro”.O pensamento de garantir a existência de Israel tem influência na abordagem da imprensa internacional.[A cidade israelense de] Tel Aviv é uma cidade europeia.

Eu acho que a sociedade ocidental tem identificação maior com o povo de Israel do que, talvez, com o povo da Palestina. Eu mesmo passei por uma experiência pessoal. Estava de férias em Istambul, na Turquia, e havia a crise dos refugiados. Vi um casal na rua com um filho, pedindo ajuda. Tive aquela reação padrão de olhar para o outro lado e passar reto.

Já no restaurante, me senti tão mal que voltei e dei uma grana para a família. Eles tinham uma aparência muito próxima à do meu pai e à dos meus avós. Por que não tenho a mesma solidariedade imediata com quem é diferente [de mim]? Isso rendeu muitas seções com a minha psicóloga.

Você me relatou, antes da entrevista, o impacto que te causou ver, em Israel, muros cercando os territórios palestinos. O que passou por sua cabeça?

Certa vez me relataram o caso de um palestino que teve um AVC e que precisava de uma UTI especializada. E que morreu porque não podia deixar a área em que vivia para chegar a um hospital.

Se um palestino se atrasa para voltar para sua casa, depois das 17h, e os portões se fecham, ele pode ser preso. Eu não gosto de fazer comparações porque serei julgado por elas, e estamos falando de uma coisa bem maior. Mas a privação de liberdade imposta àqueles grupos palestinos, que não podiam sair à noite e ir para o outro lado do muro, não é solução. É opressão. Fiquei impressionado também com a presença de pessoas do Exército tem todos os lugares. Não existe paz. Não existe harmonia.

Sei que você não quer comparar, mas o que achou do que viu?

O que aconteceu com os judeus na Segunda Guerra Mundial é absolutamente incomparável e nunca deve ser usado como referência para os conflitos que estão acontecendo agora. Eu, como engenheiro, acredito na evolução. Em tese, tenho fé que as barbáries daquele período não voltarão a acontecer porque melhoramos como civilização, como gente.

O meu pai e meus avós, Sigmund e Zora Herzog, fugiram da Iugoslávia [durante a ascensão do nazismo]. Os familiares que resolveram ficar acreditando que as coisas não ficariam tão ruins morreram todos em campos de concentração.

Meu nome, Ivo, foi dado em homenagem a um primo meu que morreu em campo de concentração. Quero deixar absolutamente claro que o que está acontecendo em Gaza não tem nada a ver com campo de concentração. Tem a ver com violação da dignidade humana. É o bloqueio de ajuda humanitária a uma população civil que está passando fome, em que vidas estão sendo perdidas porque as pessoas não têm acesso a alimento, medicamentos.





Minha avó contribuiu para a construção de Israel e diria que o país tem que garantir a sua segurança, mas não pode fazer o que está fazendo com as crianças na Palestina

Seus avós e seu pai fugiram de onde?

Eles, e mais um casal de tios do meu pai, que era criança, saíram da Croácia, passaram pela Itália e depois chegaram ao Brasil, onde se instalaram. Os meus avós, inclusive, tinham uma ligação afetiva, emocional e histórica muito forte com Israel. Eles não quiseram migrar, mas ajudaram na construção do país. Eu descobri recentemente, olhando nas coisas da minha avó, um certificado de Bond de US$ 150 que ela comprou para ajudar a erguer aquele Estado.

ESTADO PALESTINO

Ou seja, eles contribuíram financeiramente para a construção do Estado de Israel.

Eu defendo em todas as dimensões o direito de existência do Estado de Israel. Defendo também o povo de Israel, que tem todo o meu apoio. Agora, tem um terceiro elemento, que é o governo de Israel. O que este governo está fazendo é criminoso. O que o Hamas fez é criminoso. Mas eu também acredito que o povo palestino tem o direito de ter uma terra sua, um estado seu, e sou totalmente solidário.

O povo palestino não é o Hamas, assim como o povo de Israel não é o governo do atual primeiro-ministro [Binyamin] Netanyahu.

A sua avó Zora provavelmente não apoiaria o governo de Israel faz hoje em Gaza?

Com certeza, não. Talvez ela tivesse uma solidariedade muito imediata e muito forte à resposta de Israel contra os ataques que vieram da Palestina e que —de novo— são injustificáveis.

Mas na hora em que ela visse as crianças [de Gaza] morrendo de fome… Ela passou por isso. Passou por essa experiência de ter dificuldade de ter comida para dar para o filho dela, para dar comida para o meu pai [Vladimir Herzog].As fotos que a gente vê do meu pai criança, é [a imagem de] um esqueletinho. Eles chegaram a passar fome.

Ela se comoveria imediatamente?

Ela diria que, sim, Israel tem que garantir a sua segurança, mas que Israel não pode fazer o que está fazendo com as crianças na Palestina.[Ela defenderia que] Tem que deixar chegar ajuda para as crianças. Tenho certeza disso.

Que outras iniciativas você planeja para se manifestar?

Estamos vendo demonstrações públicas [contra atos do governo de Israel em Gaza] se intensificando em cidades pelo mundo afora, e até mesmo em Israel. Vários comandantes do Exército de Israel e até mesmo membros que deixaram o governo dizem que já ultrapassou o ponto do que é uma guerra e do que é um crime.

Estou muito incomodado, muito indignado com o que está acontecendo. Somos uma gota no oceano. Mas sem a gota não existe oceano, então o que pudermos fazer para mostrar a nossa indignação, vamos fazer. Vamos articular e buscar apoio de grupos e organizações que também estão se manifestando para tentar promover, nas próximas semanas, um ato público pela vida das crianças da Palestina.

ARTICULAÇÃO BRASILEIRA

O que pensa das falas do presidente Lula (PT), que vem criticando Israel de forma muito dura?

Há notícias de que em poucas semanas haverá uma reunião da ONU, articulada novamente pelo Brasil, em que a maioria dos membros das Nações Unidas vão fazer uma declaração a favor do reconhecimento do Estado Palestino.

Então, mais do que falar do presidente Lula, mas não deixando de falar porque ele é o líder desta instituição, eu acho que o papel que o Brasil tem desempenhado nesse conflito é muito bom, muito admirável.

CRÍTICAS

Críticas a Israel geram sempre reações de setores da comunidade judaica, que as definem, na prática, como antissemitismo. Você já sofreu com essas reações?

Meu artigo é sintético e de poucos parágrafos. O povo de Israel tem a minha total solidariedade. O ataque do Hamas é abominável e imperdoável. Tem que ser condenado. Sem “mas”. O que Israel está fazendo, de bloquear ajuda humanitária à população civil de Gaza, é injustificável. É um crime. E não tem “mas”. A necessidade de acabar com um grupo terrorista não pode ser justificativa para esse nível de ataque à população civil.

Sobre medo de sofrer críticas de membros da comunidade judaica: quando a gente faz algo depois de uma reflexão profunda, e acredita que está fazendo a coisa certa, não pode deixar de fazer porque alguém pensa diferente de nós.

“Ah, alguém pode vir com uma crítica forte contra mim, contra a nossa organização [o Instituto Vladimir Herzog.” Pode ser. Mas a gente tem que fazer. Um dos maiores orgulhos que essa organização tem foi o de o presidente Bolsonaro [PL] dizer [em seu governo] que o Instituto Vladimir Herzog não ia receber mais nenhum recurso federal. Neste momento, eu tive a certeza de que a gente está fazendo um bom trabalho. Entendeu? É mais ou menos isso.

Leia, abaixo, o artigo de Ivo Herzog sobre a situação em Gaza:

noticia por : UOL